Turbilhão
por Paulo Miyada
Objeto de meu mais desesperado desejo, faz de mim um instrumento de teu prazer, sim, saiba que toda época de renovação acelerada dos meios de reprodução gráfica estimula o olho armado de tesoura e estilete. É um campo em flor quando a sombra se esvai, é arena de estímulos apalpados, engolidos, cortados, de onde liberto-me ficando teu escravo.
Cavo a direita claridade do céu e agarro o sol com a mão. Ofuscado por imagens e texturas novas, disponho-me a habitar o corpo que de tuas saias sai, fecundá-lo com algo de minha seiva. Então deixa, deixa que a minha mão errante adentre atrás, na frente, em cima, em baixo, entre.
Olhar-mão-colagem-pintura que quer a presença erótica do segredo coberto de tanto brilho constelado. Lambe olhos, torce cabelos, para quê tanto corpo! Pois se há corpo, que o morto ganhe do falso alguma sobrevida embebida no leite. Que o fálico brote do cálice, ou a vulva da dobra do caule.
Escorro cores moventes na água; onde cai minha mão, meu selo gravo. Deixo que o pingo amarelo se confunda com a pétala da flor em cacho. Em grinalda cachoeira. Planto diademas e espero o instante em que o todo seja muito mais que as partes. É meio dia, é meia noite, é toda hora. Desperdício, prazer da abundância e exagero do desejo - muito, muito além (e aquém) da elegância discreta.
Acumulo tessituras de mantos mil vezes dobrados sobre si mesmos Quero fazê-los extasiados. Quero que sejam corpo no lugar do corpo que não tenho.
Eu visto, mas ficaria contente se me desses, por instantes apenas e bastantes, a nudez longínqua e de pérola - nudez total! Todo o prazer provém de um corpo (como a alma sem corpo) sem vestes. A minúcia da pintura seduz e cega como o brilho do sol que tenho na mão. Esqueça a fatura e procure a volúpia. Faça qualquer coisa, mas, pelo amor de deus (ou de nós dois): SEJA.
. A exposição Mariana Palma: Soma é a primeira exposição individual da artista após um intervalo de 5 anos. A mostra traz pinturas, fotografias e aquarelas recentes da artista e é acompanhada por um texto de Paulo Miyada.
. As pinturas intensificam a procura da artista por um espaço pictórico singular, que é simultaneamente superfície aquosa de texturas e imbricação de figuras e objetos incompletos. Isso decorre do próprio processo de pintura: a artista as inicia com um mergulho da tela em água coberta por pigmentos, em um processo similar à marmorização de papel. Com isso, ela produz padrões intrincados de cores, linhas e pontos, sobre os quais pinta laboriosamente partes de tecidos estampados, elementos arquitetônicos e plantas imbrincados entre si. Assim, com intensa cor e altíssima quantidade de estímulos visuais, as pinturas procuram seduzir o olho e estabelecer com o espectador uma relação de fascínio, repúdio, identificação e estranhamento. Em suma, são imagens abundantes e com muitos focos compositivos, que podem ser lidas em partes ou como conjunto, acelerada ou detidamente.
. As fotografias e aquarelas, por sua vez, são produzidas de modos mais detido, concentrado em problemas visuais e simbólicos específicos. As fotografias retratam montagens que a artista faz com plantas em estágios variados de apodrecimento e plantas artificiais de plástico. Criam-se híbridos, muitas vezes em evocações de alguma espécie de cópula. Fotografadas frente a um fundo infinito negro ou mergulhadas na alvura do leite, essas montagens flutuam como em imagens botânicas. O mesmo acontece nas aquarelas, porém com maior liberdade imaginativa e com a delicadeza do traço da artista.
. Em conjunto, esses trabalhos traçam um panorama acerca do desejo em múltiplas acepções: sexual, escópico, voyeurístico, acumulador, romanesco, fabular. Esse é um motor constante na trajetória da artista, que agora assume maior intensidade. O texto poético proposto por Paulo Miyada tenta, justamente, aproximar-se dessa miríade de desejos ao combinar, por colagem, trechos dos poemas Elegia: Indo para o leito (John Donne, tradução de Augusto de Campos), Poema do amor sem exagero (Joaquim Cardozo), Objeto (Paulo Leminski) e Mel (Waly Salomão). Trata-se de um escopo inusual no campo da arte contemporânea, que talvez demande outras maneiras de olhar, que não se restrinjam a aspectos formais e, tampouco, circunscrevam interpretações eminentemente discursivas.